EM JULGAMENTO INÉDITO, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ) DETERMINA A FIXAÇÃO DE MEDIDA PROTETIVA A MULHER TRANSEXUAL VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. 


Resumo: O Superior Tribunal de Justiça (STJ), corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, no julgamento do Recurso Especial (REsp) nº 1.977.124/SP pela 6ª Turma, especializada em Direito Penal, decidiu que a Lei Maria da Penha é aplicável em casos de violência doméstica e familiar praticada contra mulher transexual.

O núcleo da discussão foi se o termo “mulher”, previsto no art. 2º da lei, abrange apenas a condição de mulher biológica, como entendeu o Poder Judiciário de São Paulo, ou extrapola tais limites, tal como defendido pelo MPSP, que requereu a incidência da proteção baseada no gênero da pessoa.

Autora: MARINA LESSA CAVALIERI. Advogada (OAB/SP 462.394). Bacharel em Direito pelo Instituto Superior de Ciências Aplicadas – ISCA Faculdades (2020). Cursando pós-graduação em Direito Digital e Proteção de Dados.

Artigo: A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), é amplamente conhecida por criar mecanismos para coibir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher. 

Em seu art. 2º, a lei prevê que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”.

Sobre o conceito de violência, dispõe em seu art. 5º que “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.

Tendo isso em vista, durante o julgamento do Recurso Especial (REsp) nº 1.977.124/SP, em 5 de abril de 2022, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que é a corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, decidiu que a Lei Maria da Penha é aplicável em casos de violência doméstica e familiar praticada contra mulher transexual e, com isso, deu provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), “para determinar ao juiz que expeça medidas protetivas requeridas pela vítima”.

No caso concreto, a vítima teria sido agredida fisicamente por seu pai que, alcoolizado, a perseguiu pela rua do local de residência tentando atingi-la com um pedaço de madeira, até que a mulher encontrou uma viatura da Polícia Militar (PMESP) que passava por perto.

Iniciada a ação penal contra o réu, as instâncias ordinárias entenderam que a medida protetiva seria incabível no caso concreto, pois, de acordo com a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que havia indeferido a medida, “mulher” e “homem” seriam conceitos científicos e biológicos e não poderiam, portanto, ser igualados, cabendo a proteção apenas à condição de mulher biológica. 

Assim, ante o indeferimento do recurso em sentido estrito pelo Juízo Estadual, o Ministério Público (MPSP) interpôs Recurso Especial (REsp), cujo objetivo é provocar o STJ para que resolva interpretações divergentes sobre um determinado dispositivo de lei federal, alegando, em suas razões recursais, que as decisões proferidas nas instâncias inferiores não teriam observado o artigo 5º da Lei Maria da Penha, defendendo que a única interpretação possível do dispositivo legal seria a que protege a mulher de qualquer espécie de violência contra ela praticada baseada em seu gênero, e não apenas no sexo biológico.

O relator do caso no STJ, Min. Rogério Schietti, em seu voto, entendeu como descabido o entendimento do Tribunal de Justiça (TJSP) no caso concreto, destacando que “a Lei Maria da Penha nada mais objetiva do que proteger vítimas em situação como a da ofendida destes autos. Os abusos por ela sofridos aconteceram no ambiente familiar e doméstico e decorreram da distorção sobre a relação oriunda do pátrio poder, em que se pressupõe intimidade e afeto, além do fator essencial de ela ser mulher”.

Ainda, diferenciou os conceitos de gênero e sexo e esclareceu noções sobre os termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a inclusão dessas pessoas sob o abrigo da Lei Maria da Penha, dizendo: “este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”.

Por fim, relatou que o Brasil, sozinho, responde por 38,2% dos homicídios contra pessoas trans no mundo, decorrendo a violência de gênero da “organização social de gênero, a qual atribui posição de superioridade ao homem. A violência contra a mulher nasce da relação de dominação/subordinação, de modo que ela sofre as agressões pelo fato de ser mulher”.

Acompanhando o seu voto, a Min.ª Laurita Vaz afirmou que a abrangência do art. 5º da Lei Maria da Penha passa, necessariamente, pelo entendimento do conceito de gênero, que não se confunde com conceito de sexo biológico, concluindo que “a própria realidade brutal vivenciada pelas mulheres trans permite identificar traços comuns com a violência praticada contra mulheres cisgênero, o que releva que atos violentos possuem mesma origem: a discriminação de gênero”.

O acórdão proferido pelo STJ é de extrema importância, uma vez que, embora existam registros sobre a concessão de medidas protetivas a mulheres trans vítimas de violência doméstica e familiar no âmbito de diversos Tribunais de Justiça Estaduais, é a primeira vez que tal entendimento é manifestado pelo STJ, tratando-se de importante precedente que, certamente, irá guiar as próximas decisões sobre o tema em âmbito nacional.

Fonte: Superior Tribunal de Justiça. Sessão de julgamento do REsp nº 1.977.124/SP. Disponível em: <https://youtu.be/RFU-d7C-MAY?t=12088>.